domingo, 6 de dezembro de 2009

Ou Deus ou a Inexistência da Arte

por Carlo Felipe Pace


Que Deus não existe é quase um fato consumado. Ou, pelo menos, o é entre os artistas modernos, suposta e decepcionante nata intelectual pensante da sociedade. Na verdade, para eles, não é que Deus não exista, mas com certeza não existe o Deus cristão, esse não existe mesmo. Alguns preferem acreditar em “uma força maior”, outros dizem acreditar na “energia” e alguns chegam até a acreditar em simpatias ou na natureza. Todas as crenças tangenciam a Verdade? Provável... No entanto, não deixam de ser crenças em qualquer coisa. Qualquer coisa, menos acreditar em uma Verdade absoluta e suprema, doutrina da mão imperiosa da Igreja Católica. Verdade – com a letra maiúscula agora apenas devida ao início da frase – seja dita, crenças superficiais são mais agradáveis de ser sustentadas no dia-a-dia, e a aceitação da pluralidade de crenças evita o desagradável conflito intelectual profundo. Melhor assim, para eles. Conflitos intelectuais para os ditos artistas modernos não devem avançar para além dos limites impostos por uma mesa de bar. São generalizações, obviamente, pois existem artistas sérios. E como saber quais são sérios e quais não são? Simples. Ao final da divagação que se segue, os que ainda estiverem no barco, terão chegado à outra margem.

Antes de qualquer coisa, é preciso explicar o porquê dessa petulância específica com os artistas. Primeiro, porque eles são responsáveis pela séria e respeitável continuidade da Arte, e isso não é qualquer coisa. A Arte tem como intencionalidade a representação de uma sociedade e de suas projeções, portanto cobrar os artistas por um mínimo de reflexão menos infantil, não seria nada demais. Segundo, porque a divagação que farei em seguida traça um paralelo importante entre a fé religiosa e o fazer artístico, o que acredito que seja de relevância para os artistas. E terceiro, porque acompanhando suas conversas – nas mesas de bar, uma vez que tem sido difícil encontrá-las nos livros – é possível perceber, por um lado, uma aversão total e completa, até com uma grande dose de escárnio, a qualquer demonstração de fé religiosa mais séria, como se a mesma fosse invariavelmente fruto da ignorância; por outro, um abandono gradativo da subjetividade necessária para a apreensão da fé, com o discurso de que a fé não passa de uma muleta para os fracos e desprovidos de “autocompreensão”.

Pois bem, começo aqui a minha divagação justamente por esse terceiro fato: a descrição da fé como muleta para os fracos e desprovidos de autocompreensão. Por “autocompreensão” estou entendendo a tentativa comum e vã de dizer que é possível encontrar a Verdade em si próprio, no indivíduo, e que a crença em uma Verdade externa, única e suprema – e por conseqüência uma entrega pessoal a essa Verdade – seria caracterizada por um abandono da busca real pela Verdade. Para a maioria dos artistas, não existe uma Verdade absoluta única e os fiéis em uma missa de domingo não passam de indivíduos carentes dessa autocompreensão, indivíduos que entregam suas vidas a uma coisa que nem conhecem e nem sabem se é correta. Confesso que acredito que muitos devem mesmo se enquadrar um pouco nessa descrição, mas então, artistas, eu pergunto: O que é a Arte? E neste exato momento, os leitores devem perguntar qual a importância dessa pergunta nessa divagação. Já deveria ter ficado óbvio, mas vamos prosseguir.

Se fosse perguntado se o que Schiller, Beethoven e Picasso faziam era a mesma coisa, a resposta imediata seria que não. Um escrevia belos textos, outro compunha belas músicas e o outro pintava belos quadros. Se fosse perguntado se uma poesia e uma escultura são a mesma coisa, responderiam que não, que são formas diferentes de expressão artística, com suas específicas técnicas, intencionalidades e, por que não dizer, regras. Sou obrigado a dizer que também entendo assim. Mas, não haveria alguma coisa que aproxime os três indivíduos citados? Ou, mais específica e principalmente, não haveria como que um núcleo central tangenciado pelas três expressões artísticas de cada um deles? Parece que sim, e não é à toa que damos às três coisas o nome de Arte. Compreendemos as três expressões como Arte, mesmo que essa aproximação não seja nada óbvia. Basta lermos uma poesia, olharmos um quadro ou uma escultura e ouvirmos uma música, para percebermos que se tratam de coisas muito diferentes. Muito, mas não totalmente. E por quê? O que faz existir algo semelhante entre palavras escritas, tintas numa tela, uma pedra esculpida e a propagação sonora de diversos instrumentos? Tudo é Arte, é a manifestação da Arte. Entendam bem: Existiria algo para além das manifestações materiais. A Arte seria uma essência da qual as manifestações artísticas são dotadas. As criações artísticas, independente das mídias utilizadas – teatro, literatura, ou o que seja –, despertariam uma coisa em comum, subjetiva, que permitiria que compreendêssemos que são manifestações da Arte. Cada uma das mídias artísticas seria um meio pelo qual a Arte se manifesta. Por isso, mesmo que subjetivamente, conseguimos dizer que há sim algo que aproxime todas as produções artísticas que apreciamos. Mas, o que é a Arte?

Curiosamente, de todos os artistas e não-artistas aos quais pergunto o que é a Arte, obtenho sempre a mesma resposta: Não é possível responder exatamente. As respostas são sempre turvas e repletas de subjetividade, precisando muitas vezes recorrer a exemplos para explicar o que se sente ou o que se pensa sobre a definição da Arte. A Arte não pode ser simplesmente a expressão de um indivíduo, pois existem expressões que não são artísticas (vide os protestos políticos). Também não são apenas as técnicas, pois da mesma maneira existem técnicas que não são artísticas (vide os pedreiros). Também não poderia ser a inovação, a criação do novo, pois dessa maneira qualquer novo produto desenvolvido para um mercado deveria ser considerado uma expressão artística. E assim, sucessivamente, poderíamos ir demonstrando uma a uma as impossibilidades de restringir a definição de Arte a qualquer um dos conceitos comumente apresentados. E, de tal maneira, seria possível concluir que a Arte não existe? Uma afirmação de que a Arte não existe seria instantaneamente alvo de repúdio e desordem. Obviamente, a Arte existiria, pois aí estão os poemas, os quadros, as músicas, as danças etc. Aí estão os artistas dedicando e entregando totalmente suas vidas na tarefa de produzir a Arte. Mas, se acabamos de concluir que não temos a capacidade de distinguir totalmente o que é a Arte, como podemos saber que todas essas manifestações são frutos da existência da Arte? Ou seja, se essa pergunta parece absurda, então a existência de padres, igrejas, orações etc. também deveriam sugerir uma prova de que Deus existe. A mesma subjetividade necessária para definir a Arte e comprovar sua existência também se apresenta para a definição e comprovação da existência de Deus. No entanto, por algum motivo, a sociedade consegue conviver bem com o fato de que milhares de pessoas dediquem a produzir e outros milhões a cultuar uma coisa que, no fundo, ninguém consegue ter certeza do que significa e nem de qual é o seu propósito: a Arte; mas não conseguem aceitar que outros milhões convivam com outra coisa que, apesar de também difícil de compreender, possui alguns propósitos muito claros: o Deus cristão.