Com o crescimento do chamado Mercado Cultural, algumas questões vêm à tona sobre a sua estrutura de funcionamento. Entre diversas leis de incentivo, patrocínios, permutas, apoios, o artista por vezes se perde e não consegue perceber alguns problemas na dinâmica da produção artística. Principalmente, no que diz respeito ao mercado. Hoje, resolvi postar aqui um pequeno texto meu sobre este assunto, mais especificamente sobre a Lei Rouanet e algumas de suas complicações. Então... lá vai:
A Lei Rouanet: Incentivo à cultura ou monopólio do financiamento?
Desde a década de 70, o patrocínio de ações culturais já é pauta na agenda de diversos países. No Brasil, porém, o assunto apenas ganhou impulso a partir da década de 90, com a instituição das leis culturais. Quando, na segunda metade da década de 90, uma onda de privatizações marcou a economia brasileira, viu-se também uma explosão de patrocínio de megaeventos. Como afirma Ana Carla Fonseca Reis:
“Muitas dessas empresas não tinham como estratégia firmar um comprometimento com a cultura, mas buscavam apenas anunciar sua chegada com pompa e circunstância, junto à mídia e a seus novos consumidores.”
Uma iniciativa a priori sem problemas. Aliás, uma iniciativa que até beneficia a todos: a empresa, os artistas e os espectadores. Porém, fato é que diversos desses megaeventos foram patrocinados por empresas que se utilizaram das leis de incentivo à cultura – mais especificamente a Lei Rouanet –, o que significa que o dinheiro destinado ao patrocínio destes eventos na verdade foram verbas públicas apenas mediadas pelas instituições privadas. Qual o real problema nisso?
Em primeiro lugar, vamos rever o funcionamento da Lei Rouanet. O artista entra com um projeto no Ministério da Cultura em busca de um patrocínio para uma de suas produções. Supondo que o MinC aprove o projeto deste artista por considera-lo de importância relevante ao desenvolvimento cultural do país, ele libera uma verba para patrocínio. Porém, esta verba não sai direto de um fundo público, e sim cabe ao artista ir buscá-la junto a uma pessoa física ou jurídica, que por sua vez abaterá este valor dado ao artista do seu imposto de renda. O que vemos ser criado aqui então é um processo no qual um dos agentes não tem real funcionalidade prática: a pessoa física ou jurídica que dá o dinheiro ao artista e abate do seu imposto de renda.
No Dia Mundial do Teatro4 de 2008, em um protesto contra a Lei Rouanet, o presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, Ney Piacentini, afirmou:
“A lei que propomos é baseada em um fundo público. Não depende de renúncia fiscal, muito menos dos departamentos de marketing das grandes empresas, que hoje escolhem quem ganha patrocínio.”
A proposta da Lei Rouanet seria incentivar o patrocínio da cultura por parte de outros órgãos que não o governo, como as empresas, por exemplo. No entanto, as empresas são instituições privadas que visam o lucro, e todas as suas ações devem convergir para este objetivo. Consciente disso, o ideal de promover a manutenção e o desenvolvimento da cultura não estará necessariamente entre as principais metas de um patrocínio provindo de uma empresa. Em uma pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro e distribuída no Encontro do Conselho de Cultura da Associação Comercial do Rio de Janeiro, em 1998, houve uma revelação interessante no que se refere aos principais motivos invocados pelas empresas para tomarem a decisão de investir em projetos culturais: 65% delas consideram que esse investimento representa ganho de imagem institucional, enquanto 28% acham que o investimento agrega valor à marca da empresa. Motivos que não teriam problema algum não fosse o fato de que 100% da amostra de 111 empresas terem se beneficiado de leis de incentivo fiscal5.
Dentro deste conturbado contexto, cheio de confrontos de interesses, há então duas questões dignas de análise. Em primeiro lugar, a detenção por parte das empresas do poder de decisão sobre os patrocínios. E, em segundo lugar – mas não menos importante –, o bem-estar dos artistas. No fundo, as duas questões estão totalmente relacionadas, sendo talvez a primeira uma variável na função da segunda. Quanto maior o monopólio das empresas sobre a oferta de patrocínios, menor o bem-estar dos artistas. É uma simples lei econômica de oferta e demanda que anuncia uma falha no funcionamento deste processo de patrocínio. Isso sem contar os distúrbios de ordem ética que o mesmo gera, visto que é na mão de um agente que não possui um gasto real e que não possui os ideais corretos que está a decisão de quem serão os patrocinados. E mais: é sobre o nome dele que haverá o mérito de patrocinador e promovedor de cultura.
Ao utilizar o conceito de “bem-estar dos artistas”, toma-se o mesmo pelo conceito econômico. Ou seja, tendo como agentes as empresas e os artistas, e sendo estes ofertante e demandante por patrocínio respectivamente, quanto mais as empresas se apropriam do excedente dos artistas, menor o bem-estar dos mesmos. Melhorando: Uma vez que a Lei Rouanet é uma possibilidade de patrocínio com raros substitutos perfeitos, a demanda por parte dos artistas torna-se inelástica, e cria para as empresas uma condição cômoda para exigir regalias cada vez maiores. Desde um grande destaque ao nome da empresa nos meios de divulgação do trabalho artístico – muitas vezes maior até do que o nome dos próprios artistas – até cotas de ingressos para funcionários ou mesmo colocação de estandes promocionais da empresa na porta de entrada do evento. Essa posição da empresa gerada por uma falha no sistema de financiamento permite que ela se aproprie do excedente de benefícios que os artistas estariam dispostos a fornecer em troca de um patrocínio. E pior. Na verdade, a empresa consegue isso se utilizando de dinheiro público, uma vez que ela abaterá do seu imposto de renda o valor destinado ao patrocínio. Marketing de uma empresa privada financiado pelo governo.
A proposta das leis de incentivo é estimular as empresas a participarem de forma mais ativa, desenvolvendo a área cultural, gerando renda e criando mais empregos diretos e indiretos, reforçando a compreensão de que o investimento privado e público em cultura não é gasto, mas ganho em qualidade de vida da população e avanço em termos de desenvolvimento6. Ao se abster do processo direto de financiamento, trocando o fundo público pelo incentivo fiscal, o governo cria uma assimetria de poder que beneficia os ofertantes de patrocínio que não necessariamente possuem como objetivo primordial a promoção da cultura.
É isso aí.
Um grande abraço e vê se cutuca a cuca!
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Caríssimo Carlo.
ResponderExcluirVocê realmente localiza o núcleo do problema que é, a saber, que a lei serve para que seja feito "Marketing de uma empresa privada financiado pelo governo". Mas me ocorrem duas questões:
1)uma alternativa completamente calcada em fundos públicos seria ético?
2) uma alternativa completamente calcada em fundos públicos, caso seja ética, seria a melhor possível?
Com (1) quero me referir à pergunta básica: de onde viriam os recursos? Mais impostos (com todos os problemas que você conhece melhor do que eu)? Não haveria também a chance de o governo também fazer marketing, sobretudo em épocas eleitorais com shows ou peças estrategicamente fomentados em tal ou tal região a fim de angariar popularidade? Como administrar esse fundo público?
Com (2) quero perguntar se, caso fosse possível um modelo no qual a iniciativa privada participasse de modo que suas vantagens e seu poder de decisão fosse equilibrado, não seria um modelo melhor do que o completamente público, pelos motivos de (1)?
Veja se não abandona o blog hein...rs
Abs.
Oi Felipe!
ResponderExcluirParabéns pelo blog.
Não sabia da existência dessa lei.
Pena que como muitas outras coisas no mundo não usam para o bem das pessoas.
Abraços!
Oi, Joseani!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelo seu comentário.
Verdade... Parece que sempre que alguém pensa em algo para ajudar, tem alguém pensando em uma maneira de burlar o esquema. Paciência... O jeito é fazer a nossa parte, nem que seja apenas divulgar o que sabemos, né?
Um beijão e nos vemos por aí.
ps: Alguém disse que havia se animado para escrever alguma coisa, e eu vou querer ler, hein?