terça-feira, 6 de julho de 2010

Outono

Sempre me pergunto se há realmente necessidade de fazer alguma espécie de introdução nos posts antes de colar o texto que realmente importa... Mais inútil ainda é fazer da introdução um questionamento sobre a real necessidade da introdução.

Segue abaixo mais um conto do meu livro de contos.



Outono

Era simples para aquela senhora tomar um pileque dois três goles e dormir. Viver até bastar-se do dia e dormir até abastardar a morte. No pranto do quarto, porém, quando se olhava nua no espelho, cada ruga de sua tristeza era uma ferida na pele, como tumores, como cicatrizes sem glória de uma guerra perdida. E ela, combatente sem farda ou vergonha, via nas rugas os filhos, na flacidez o trabalho, nos cortes de estrias que varavam o corpo todos os instantes de uma vida ridícula. E tomava um pileque dois três goles para esquecer e dormir e deitar e morrer, todas as noites, na esperança de renascer quando manhã. Mas então o sol é o mesmo e o céu e o dia os mesmos e ela também; senhora, velha que não quer a velhice, que pinta a juventude com batom. Sob os olhos esconde a angústia com pó, lápis e pincel. Esconde a morte, disfarça a dor de não ser mais aquilo que a fazia ser quem fora. Era agora um espelho quebrado para o mundo, acreditava. E para ela mesma não sabia o que ser, perdida em uma nudez seca com um vestido de seda aos pés.

(Setembro/2009)


Um grande abraço!

E vê se cutuca a cuca!

Um comentário:

  1. Reconhecer que a paixão de existir deixa sulcos na carne é recuperar uma dimensão que há muito esquecemos. Espantar-se com isso é um sinal de grandeza. O corpo, hoje, é um inimigo. Algo a ser dominado, manipulado ou, como se diz por aí, construído. O seu envelhecer e padecer não são mais marcas pelas quais necessariamente a vida transita, mas devem ser odiados, maquiados, esquecidos, numa dinâmica histérica de adoração e repulsa da própria existência que se vê finita, desgastada (e desgastante) e insuficiente.

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